Um “papo” de democracia brasileira com Eulália Alvarenga

Diante de um cenário da democracia brasileira preocupante e polarizado, conversamos com a economista e especialista em Gestão Pública e Direito Tributário, a auditora Eulália Alvarenga.

Como você avalia o atual cenário da democracia brasileira?

[Eulália] Vejo um período em que a democracia brasileira está bem frágil, principalmente porque muitas pessoas não acreditam na política e por isso ficam apáticas. Para elas tanto faz ganhar A ou B. Veem a política como algo sujo, ruim, e com isso a apropriação do estado por um grupo de pessoas que não visam o interesse público fica mais fácil.

Em sua opinião, quais são os principais fatores para que estejamos nesta realidade?

[Eulália] Creio que a decepção é com a falta de democracia e tudo que a falta dela representa. Cito como exemplos:

Somos um país de imensas riquezas e também um dos países mais desiguais do mundo.

  • Corrupção: ignorando que a corrupção do setor público tem relação direta com os interesses do setor privado, tem corruptos e corruptores – e todos devem ser punidos;
  • Mídia comprometida com as grandes corporações;
  • Sistema tributário injusto: espelha a representatividade do povo nas decisões políticas;
  • Direcionamento do orçamento para pagar dívida pública: ela cresceu devido ao pagamento de juros mais altos do mundo, em detrimento às necessidades básicas da população, como saúde, educação, saneamento básico etc, gerando muita desigualdade.

O cidadão não participa do processo democrático porque pensa que não pode mudar essa realidade cruel. A eleição é somente uma parte. O cidadão não tem voz. Cito como exemplo as consultas populares e conselhos, que existem simplesmente para cumprir a legislação e não condizem com o que está determinado na Constituição Federal.  

As reivindicações emanadas da participação popular, em qualquer esfera de governo, apresentam baixíssima ou nenhuma execução orçamentária, mesmo estando no orçamento não são efetivadas.

Falta a transparência pública na democracia brasileira

Outro elemento fundamental para a efetividade da democracia é a transparência pública. A transparência permitiria a qualquer cidadão saber onde, como e porque o dinheiro público está sendo gasto, o que ajudaria a produzir confiança pública na capacidade de desempenho do governo.

Na realidade, o que temos é a publicidade dos atos de uma forma concentrada e muito técnica. Para que a democracia seja plena a gestão pública tem que ser feita às claras, sem mistérios. Os dados devem ser publicados em linguagem simples e compreensível a qualquer cidadão, para que possam compreender e fazer uso dela.

A mera publicidade dos atos com informações em linguagem extremamente técnica, como é feita, por si só́, não garante a transparência.

Política e sociedade estão sofrendo com a influência do caráter de nossos representantes e as falhas do sistema que rege a coisa pública. Você enxerga que isso pode mudar ou pelo menos melhorar?

[Eulália] Claro que tenho esperança, mas não acredito em salvadores da pátria. A realidade só poderá ser mudada com a participação popular.

Mas será que a nossa política econômica é favorável a essa mudança de cenário da democracia brasileira?

Estamos há décadas com um modelo econômico concentrador de renda e riqueza devido à política monetária suicida e um modelo tributário regressivo, acarretando maior tributação sobre o consumo e afetando proporcionalmente os mais pobres, acentuando as desigualdades sociais.

Isso faz o Brasil, que está entre os 10 maiores PIB do mundo, um dos países mais desiguais. Para sustentar esse modelo sofremos com ajustes fiscais, privatizações e contrarreformas.

A política econômica em vigor, desde a década de 90, está fundamentada em um tripé: metas de inflação; câmbio flutuante e superávit primário. Essa política é um equívoco para a realidade brasileira porque em primeiro lugar, a inflação no Brasil é majoritariamente de custos, e não de demanda.

Isso quer dizer que nossa inflação não é decorrente do excesso de demanda por produtos. Ela é decorrente, sobretudo, em função dos custos de produção repassados aos consumidores, em especial dos chamados custos administrados pelo governo (por exemplo, água, energia elétrica e combustíveis) cujos aumentos impactam toda a cadeia produtiva.

Em segundo lugar, o mecanismo do câmbio flutuante (a cotação do real oscila de acordo com a demanda), depende de intervenções do Banco Central do Brasil – BACEN para estabilizar o valor da moeda. Isso gera, em muitas situações, perdas para o país, visto que os prejuízos do BACEN são bancados pelo Tesouro Nacional.

A título de exemplo cito as operações de Swap Cambial realizadas entre setembro de 2014 a julho de 2015 que somaram perdas de R$158 bilhões ao BACEN. Essas operações foram consideradas ilegais pelo Tribunal de Contas da União -TCU.

Outra classe de operações realizadas sem a devida transparência por parte do BACEN, que também podem gerar prejuízos ao erário são as chamadas “Operações Compromissadas” ou de “mercado aberto”, que consistem na remuneração da sobra de caixa de bancos.

Por fim, a “ditadura” do superávit primário, que impõe a necessidade de cortes orçamentários anuais. Veja a PEC da Morte, Lei Complementar nº 95, que afeta dramaticamente os trabalhadores e a gestão pública porque congela por 20 anos os gastos primários, ao passo que nada corta dos gastos financeiros, sendo que o maior gasto da União é o financeiro, direcionado principalmente para o pagamento de juros da dívida pública, externa e interna.

Porque mantemos os juros tão altos? E como o próximo presidenciável poderia reduzir os gastos com juros da dívida pública, levando em conta as concentrações de renda e de patrimônio descompassados?

[Eulália] Essa é uma boa pergunta. Não há explicação técnica sobre porque pagamos juros tão altos. Os gastos com juros da dívida pública representam quase a totalidade dos gastos financeiros da União, tendo chegado a aproximadamente 10% do PIB em 2015.

Apesar da razão Dívida/PIB ser elevada, o nosso grande problema é a elevada taxa de juros.  O nosso endividamento não foi para gerar recursos para financiar a saúde, educação, infraestrutura ou outro investimento que garantisse a melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro. A dívida pública brasileira é meramente financeira, dívida para pagar dívida.

A democracia brasileira enfrenta juros exorbitantes

O percentual “Dívida Pública/PIB”, nos Estados Unidos, é mais de 100%, e no Japão chega a mais de 200%. No Brasil, estamos vendo as finanças públicas sendo corroídas pelos juros exorbitantes pagos aos rentistas e que parecem intocáveis no orçamento público. Mas é só pesquisar para verificar quem foram os Ministros da Fazenda e Presidentes do BACEN, todos indicados pelo mercado financeiro.

E quais as saídas?

Temos dívida externa de mais de U$$ 500 bilhões e somos o quarto credor dos EUA. Nosso dinheiro é emprestado àquele país a juros reais menor que 1% a.a. e pagamos um dos juros mais altos do mundo. Será que precisamos desse montante de reservas? É o mesmo que pegar dinheiro do chegue especial e colocar para render na poupança.

Outra política que poderia ser adotada seria aumentar a nossa base monetária. Ela não chega nem a 5% do PIB. A média da base monetária em vários países varia de 15 a 30% do PIB. O argumento que o aumento da base monetária geraria inflação não se sustenta, uma vez que deixamos de emitir moeda e emitimos títulos da dívida pública, pagando juros muito altos.

O que se vê é uma ação para manter esse sistema. As reformas implementadas até agora têm endereço certo.

Veja o enfraquecimento da previdência social pública, onde se “sugere” que os trabalhadores passem a participar de fundos privados de previdência sujeitos a regras de mercado e sem garantia do Estado. Os fundos de pensão privados já quebraram em todo mundo. Os exemplos que temos do mundo são desastrosos, como o caso da Argentina, Chile e mesmo no Brasil. Quem se lembra do Montepio e o GBOEX?

No nosso sistema tributário atual, a União concentra a maior parte das receitas, e os municípios sem independência financeira ficam na mão dela, aguardando o repasse de tributos específicos e enfrentando os desafios com a arrecadação de tributos municipais. Como você avalia o atual sistema?

[Eulália] A avaliação é que na prática não somos uma federação. A política de “pires na mão” não combina com democracia. O “caput” do art. 18 da Constituição Federal determina que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreenda a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos.

Todavia, não é essa a situação dos municípios brasileiros, uma vez que o modelo implantado não efetiva o amadurecimento de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. O financiamento do Estado, via arrecadação tributária, deve permitir que os governos cumpram duas funções essenciais:

  1. Garantir os recursos necessários a realização do bem comum;
  2. Ser instrumento de distribuição de renda e indutor do desenvolvimento social. O que ocorre no Brasil é a concentração das receitas tributárias nas mãos da União, cerca de 70%, e os municípios arrecadam em torno de 5%.

Saliento que os repasses constitucionais componentes do Fundo de Participação dos Municípios – FPM, participação dos municípios na arrecadação federal, são calculados somente sobre a receita de impostos e se agrava quando a União aumenta sua receita tributária através de contribuições sociais, e estas como não são impostos, não fazem parte do cálculo do FPM.

A reforma proposta pelo deputado federal Luiz Carlos Hauly simplifica no IVA a cobrança de impostos sobre bens e consumo e deixa para os municípios a responsabilidade dos impostos sobre propriedade. Na apresentação feita pelo deputado, o sistema é simples e eficaz. O que você pensa sobre a sua aplicabilidade e efeitos a curto e médio prazo?

[Eulália] Creio que na prática não é tão simples assim. Não existe a “dita” neutralidade do projeto. Primeiro, temos que discutir que federação queremos.

Como os municípios irão atender as demandas da população e qual a sua participação no IVA. As disparidades entre os municípios brasileiros são muito grandes. Não se pode comparar o município de São Paulo, que tem PIB maior que muitos países da América Latina, com um Município no interior do Amazonas.

Com certeza os grandes municípios vão perder receitas. Belo Horizonte vai perder receita porque sempre teve um corpo técnico comprometido com a arrecadação do ISSQN. Como as administrações tributárias dos outros entes vão assumir a gestão do ISSQN, já que estão sucateadas? O ISSQN é um imposto bem pulverizado.

Com a implantação do IVA Estadual e Federal e com a absolvição do ISSQN a independência financeira de muitos municípios será ameaçada. Principalmente dos grandes municípios que têm praticamente 60% de suas receitas provenientes de tributos de sua competência. Enterramos de vez a tão frágil independência municipal. Vamos rasgar a Constituição? Não teremos as três esferas de governo?

O que está em jogo, acima de tudo, são as condições sociais das pessoas que habitam os municípios. É a velha história, as pessoas não moram na União e nem no Estado. No momento político creio que uma reforma de tal monta não é plausível.

Precisamos criar ações dirigidas ao desenvolvimento da capacidade dos municípios de administrar e autofinanciar suas atividades urbanas e sociais, viabilizando um modelo descentralizado de administração pública.

Precisamos sim de uma verdadeira reforma tributária, em uma base tributária que proporcione a implementação de políticas públicas que assegurem os direitos das pessoas, que consigam reduzir as desigualdades e que o Brasil seja de verdade uma federação. Principalmente no que constitui os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no artigo 3o da CF:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – constituir uma sociedade (…), justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos (…)

O Projeto apresentado não resolve as questões financeiras municipais e rasga de vez a Constituição brasileira porque o município sem independência financeira não será um ente subnacional. Vamos escrever outra Constituição?

Governos subnacionais que não possuem fontes independentes de receitas não podem nunca desfrutar de autonomia fiscal. Eles podem estar, e provavelmente estarão, sob o jugo financeiro do governo central.

Em sua opinião, qual o modelo ideal de arrecadação e distribuição do bolo tributário?

Deve-se partir primeiro para a resposta à pergunta: que Federação queremos? Porque todos os direitos têm custos financeiros públicos. A cidadania que de um lado, implica que todos suportem o estado, ou seja, todos são contribuintes do imposto, na medida da respectiva capacidade contributiva, e  de outro, impõe que tenhamos delimitado o tamanho e o tipo do estado que queremos, ou seja, a existência e o funcionamento do estado passou a ser assunto de todxs.

No processo de descentralização da constituição fiscal e social de 1.988 determinou uma distribuição mais justa do “Bolo Tributário”, o que significou num primeiro momento um reforço na posição fiscal dos entes subnacionais, aumentando a participação destes na receita disponível total. Tal fortalecimento deveu-se tanto pelo aumento da competência tributária dos governos subnacionais, maior autonomia para fixação de alíquotas dos impostos que lhe são afetos, sem possibilidade de interferência de outro nível de governo na gestão de seus tributos.

Deve-se ser respondido: O Imposto é alto no Brasil para quem?

Temos que implantar uma tributação justa, acabar com as iniquidades fiscais, tudo visando os projetos que contribuem para acabar com nossas desigualdades objetivando os fundamentos da República Federativa do Brasil (ver art. 3º da CF citado na resposta anterior).

Implantação de um sistema tributário progressivo com o fim das isenções de que gozam os indivíduos mais ricos e as grandes empresas. Um sistema tributário que combata a evasão de divisas para paraísos fiscais e a sonegação fiscal. Rever as benesses tributárias para grandes empresas, principalmente para o setor de mineração.  

Participo da campanha na América Latina e Caribe – “Paguen lo justo!”. Pagar o justo vai muito além de apenas pagar corretamente os tributos. O que se deve propor com a reforma tributária é que o país tenha uma base tributária que proporcione a implementação de políticas públicas que assegurem os direitos das pessoas e consigam reduzir as desigualdades.

É preciso que tenhamos um projeto de Nação. 

Temos que fazer uma reforma tributária que vise estabelecer mecanismos que garantam transparência nos aspectos tributários, sociais, ambientais e econômicos. Os Municípios têm um papel fundamental nesse processo em razão das dimensões territoriais do país e, também, em razão das crescentes demandas da população que somente serão atendidas pelos governos que lhe são mais próximos. Todos devem ter consciência que o pagamento do imposto justo faz parte da luta social, pois é com ele que financiamos a educação, saúde, transporte e os todos os diretos sociais.

Precisamos sim de uma reforma tributária justa, mas que seja discutida e colocada em plebiscito. Que não seja feita somente por especialistas e que não acabe com a independência financeira dos municípios.

Sendo assim, podemos dizer que a democracia no Brasil é uma utopia?

[Eulália] Claro que não. Democracia plena nunca irá existir, mas a cidadania pelo menos temos que conquistar. Temos que fazer o caminho. A utopia nos ajuda a percorrer o caminho. Me lembrei de Eduardo Galeano citando Fernando Birri:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Qual a sua avaliação sobre o atual cenário político nacional e quais perfis de governantes e parlamentares, em sua opinião, vão emergir das urnas?  

O momento é decisivo, pois exige resposta urgente da sociedade. Aproxima-se o ponto da irreversibilidade do processo de exploração predatória do povo. E devemos ter em mente que não existe salvador da pátria.  

Precisamos resgatar a solidariedade de classe, ter uma pauta mínima que unifique todos os sindicatos, movimentos sociais, empresários e todos aqueles que desejam que esse país seja uma democracia de fato.

É urgente decidir sobre o uso de nossos recursos minerais, da ilegalidade de nossa dívida pública que onera gerações futuras. Temos que implantar uma tributação justa, que reforce o pacto federativo, acabando com as iniquidades fiscais e visando projetos que contribuem para acabar com nossas desigualdades.

Infelizmente, os que até agora ganharam com nossas riquezas e exploração do povo são aqueles que querem nos manter como colônia. Não querem financiar serviços públicos, querem privatizar a saúde a educação, os parques e até cemitérios. É fundamental buscar planejar o crescimento do emprego e do bem-estar da população.